segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Nuno Morais .... Últimos Poemas


Últimos Poemas
08 de Junho de 2009


Perdoem-me o longo texto, mas o Nuno merece-o.

Os laços familiares podiam fazer com que não fosse imparcial.
Assim, não serei parcial deixando falar os outros por mim.
Vi-o nascer, vi-o crescer e não o vi morrer.
Assim, ele continua "vivo".
A Sociedade Portuguesa de Autores encarregou-se, com a sua nomeação para o Prémio Autores SPA/RTP na categoria de o Melhor Livro de Poesia de 2009, de o manter vivo.
Com o seu "Últimos Poemas" a par com os consagrados poetas António Osório ( A Luz Fraterna ) e Herberto Hélder ( Ofício Cantante ), é um dos três poetas nomeados para atribuição do Prémio.
Com um Júri, para a Literatura, composto por Pedro Mexia, Rita Pimenta e Annabela Rita, vai a SPA atribuir os Prémios no próximo dia 8 de Fevereiro.
A cerimónia decorrerá no Centro Cultural de Belém e será transmitida pela RTP.
A Sociedade Portuguesa de Autores e a RTP juntam-se para atribuir uma nova categoria de prémios que reconhecem o que de melhor se fez no cinema, teatro, artes visuais, música, literatura, televisão, rádio e publicidade em 2009.

Deixou-nos precocemente, mas a sua obra ficará para sempre.
Mesmo que não receba o Troféu, a honra de ser nomeado já nos deixa a todos muito felizes.
Convenhamos que ombrear com Herberto Hélder e António Osório é reconhecer o mérito e valia dos seus Poemas !

A sua curta história :
Nuno Rocha Morais (Porto, 1973 – Luxemburgo, 2008) foi um poeta português. Licenciou-se em Línguas e Literaturas Modernas (Estudos Portugueses e Ingleses) na Faculdade de Letras da Universidade do Porto em 1995.
Aos 19 anos iniciou a vida activa na área do jornalismo no Comércio do Porto.
Em 1999 passou a integrar a equipa de tradutores da Comissão Europeia, no Luxemburgo, desempenhando desde 2007 as funções de coordenador linguístico do departamento de língua portuguesa.
«Últimos Poemas – título que, ironicamente, desde os 20 anos, ainda estudante, elegeu como o título da primeira obra a editar – foi o livro que quis deixar «organizado» e foi publicado «sem qualquer interferência na sua vontade e disposições» pela Quasi Edições, em 2009.
«Composto por cerca de uma centena de textos produzidos ao longo dos muitos anos em que se apurou o compulsivo labor de escrita do autor – entretanto disseminado por publicações periódicas» como Cadernos de Serrubia, Cadernos do Tâmega, a revista Hey!, Notícias de Penafiel, Anto e o boletim «a folha», entre muitas outras –, o livro, com prefácio de Joana Matos Frias e ilustrações de Rasa Sakalaitė, «oferece-se como uma espécie de palimpsesto sob o qual parecem esconder-se as entrelinhas de outras centenas de textos que efectivamente existem nos inúmeros manuscritos e dactiloscritos que se multiplicam nas "arcas" que deixou.» «Obra de formação e de síntese», dá a conhecer «um pequeno segmento de quase 20 anos de trabalho poético sem qualquer pré-ordenação ou identificação de natureza cronológica, o que converte o corte diacrónico numa sutura de efeito sincrónico.» (excertos do prefácio).

A Critica :

Pedro Mexia no Ípsilon
Notável estreia póstuma de um poeta com uma estética, um pensamento e uma poética.
Que uma primeira colectânea de poemas se chame "últimos poemas" parece uma ironia. Aqui, é uma ironia trágica. Nuno Rocha Morais, que foi jornalista e tradutor, morreu o ano passado, aos 34 anos, deixando um punhado de poemas publicados em revistas e bastantes inéditos, entre os quais os aqui coligidos.
É quase inevitável pensarmos em Daniel Faria, que morreu aos 28 e também deixou uma obra vasta e de alta qualidade. É aliás possível que a recepção destes "Últimos Poemas" seja de algum modo perturbada, digamos assim, pelo facto de serem últimos, pela sua condição de surpresa e despedida. Isso não impede que se diga, com alguma certeza, que "Últimos Poemas" é um dos mais belos livros da poesia portuguesa recente.
Dois elementos chamam imediatamente a atenção. Um é o "culturalismo", que aqui se desdobra em alusões, citações ou homenagens a Elizabeth Bishop, Zbigniew Herbert, Kavafis, Ponge, Apollinaire, ou a esse olímpico Goethe que achava escritores como Kleist simples "fedelhos". O culturalismo não é de todo novidade na poesia portuguesa, mas estes diálogos culturais não são solenes e entediantes, nem casuais e aleatórios; há uma lógica e uma unidade em cada poeta invocado, uma variedade nos versos e no tom dos versos que indicia uma aprendizagem poética longamente cultivada.
O segundo elemento manifesta-se no início dos versos assinalado com maiúscula, o que pode supor um certo classicismo. É um engano. Esta poesia nunca tenta efeitos de modernidade espúria e fácil, mas também não é exactamente clássica. É mais justo dizer que ela cultiva um certo acabamento, um não-espontaneísmo, aquilo a que Joana Matos Frias, no prefácio, chama uma impessoalidade que não é um fingimento. Há um Ulisses que regressa a casa e não é reconhecido por ninguém, há um Cristo que procura o "amor que o poupasse ao sacrifício", há guelfos e gibelinos, há uma recorrência de palavras raras (prófugo, mavórcio), mas tudo isso aparece tão naturalmente como a realidade mais imediata e comezinha.
A mais frequente dessas aparições tem a ver com a experiência de viver no estrangeiro (Nuno Rocha Morais trabalhava para a Comissão Europeia). Em terreno desconhecido, ou só conhecido pelas rotinas diárias, o poeta observa personagens, a sua estranheza ou banalidade, o seu mistério de "seres lacunares". Muitas vezes, a paisagem é de desolação: "Os esqueletos de metal dos guindastes, / Como mastodontes num museu de história natural; / É preciso ver cruzar, na distância, / As luzes penadas, desencarnadas, de um comboio, / Ver as chispas torturadas que as suas rodas / Arrancam aos carris; / É preciso sentir a respiração ofegante, / Moribunda, das árvores sob a primeira neve, / Farejando o fim em curso, que as retomará, / Mudado já em princípio iminente" (pág. 99). Mas o exílio e a desolação são atenuados por episódios eróticos, vividos ou imaginados, sempre algo felizes e algo melancólicos. É o caso do poema sobre as raparigas estónias: "Aprendem a exprimir sentimentos em francês / Servidos por um escanção, / Mas gostam de dizer que não têm alma, / Nunca tiveram - proibida durante décadas, / Acabou por definhar, desistir / Destes corpos altos, esguios, / Produto de qualquer pacto com o diabo. / Embora tão bálticas, não são por isso menos gregas; / Cépticas, custa-lhes a crer que o sol italiano / Seja tão incondicional na sua graça, / Que o céu possa ser tão sem censura" (pág. 39).
O exílio é uma figuração de um tema central destes poemas, que avançam sem cronologia, com núcleos temáticos tendenciais. Esse tema é a separação. A separação do casal, desde logo, a mão que de repente já não está no ombro: "Foi assim que partiste, a meio do meu nome, / Com o meu nome partido ao meio, / De que só me ficou o oco / E é de dentro dele que uma voz escura se derrama, / Incrédula e com medo, incrédula e com medo. / À volta, tudo continua, a grande montra do mundo, / O comércio de vivos e mortos, / A respirar dióxidos e monóxidos / Da ilusão de que a vida continua" (págs. 88-89). Mas também a separação radical da morte, fortíssima nos poemas familiares que evocam uma infância paradisíaca soterrada pela morte de uma avó. É isso que nos leva às incontáveis referências fúnebres, "o baque com o que terra nos recebe", versos que lidos agora parecem de mau agoiro.
Perante a morte, é preciso evitar uma tentação: a "tentação de corrigir a vida". Somos o que somos, e depois desaparecemos. Mas ainda assim levamos daqui uma espécie de ética triste: " (...) tentar o bem nosso / Pelo bem dos outros / Já não é sequer o mal menor, / Cansados de mais, brutos de mais, / Nós mesmos de mais, / Sempre morais numa impossível / E exaltada falta de paciência, / Numa pressurosa falta de ternura, / Nós sempre tão corredios, / Sárdonicos até nos estertores" (pág. 24). Há em Nuno Rocha Morais uma estética, um pensamento e uma poética. Quando ele escreve que a "única fantasia" é "Supor a existência de um real / Que não seja fabuloso" diz-nos quase tudo, mas deixa uma ambiguidade essencial: "fantasia", em linguagem poética, é o oposto de "fantasia" em linguagem comum.

António Guerreiro no Expresso
A arte da tristeza e da atenção.
Um livro de poesia trabalhado e amadurecido como uma 'obra' singular e acabada.
Este é um livro póstumo. Por uma nota biográfica incluída na badana e também pelo prefácio de Joana Matos Frias, ficamos a saber que Nuno Rocha Morais nasceu no Porto em 1973, foi jornalista do "Comércio do Porto", depois de ter terminado o curso de Línguas e Literaturas Modernas, e de 1999 até à data da sua morte - 8 de Junho de 2008 - foi tradutor da Comissão Europeia, no Luxemburgo. Esse prefácio crítico e introdutório dá-nos também a informação de que o autor deixou o livro organizado e de que o título - "Últimos Poemas" - é aquele com que, desde os 20 anos, tinha decidido inaugurar o seu percurso de poeta. Mas essa inauguração em livro foi diferida, e até agora só alguns poemas tinham sido publicados em revistas.
Os cerca de cem poemas que constituem este livro valem como uma 'obra', sem nada de avulso, sem concessões generosas ou piedosas que as circunstâncias poderiam propiciar - uma 'obra' que irrompe com força na cena da poesia portuguesa actual e com a qual temos de contar.
A característica principal desta poesia consiste em manter vivo, em vários planos, um estado de tensão que lhe dita a complexidade e a torna refractária a classificações disponíveis. Antes de mais, a tensão formal entre a regra classicizante do equilíbrio e da harmonia e o imperativo moderno da liberdade e do desregramento. Veja-se, por exemplo, como este poema (pág. 127) entra nas regiões do sinistro e do irrepresentável sem abandonar, no entanto, a solidez formal, o rigor expressivo e o modo sóbrio: "Pequeno, quase caseiro, o campo./ Em torno, maciços, os Vosges./ Os meus passos afundam-se/ Na terra húmida e mole./ Vindas de todo o lado/ No vento que o arame esgarça,/ Uivam as alcateias do terror./ E por todo o lado irrompe o vento,/ Osso furando a pele/ Deste espaço quieto e gelado,/ Desta memória com olhos/ Maiores do que o rosto."
Tensão importante é também aquela que deriva da relação que os poemas estabelecem com as suas mediações literárias. Esta é uma poesia culta, e o diálogo com outros poetas é muitas vezes explicitado. Porém, essas referências são incorporadas como matéria que o texto elabora sem o hiato da mediação. Excepção a esta regra é um texto em prosa intitulado "Um Método", designado como um "exercício pongiano" (pág. 71). Mas mesmo aqui temos uma declinação completamente idiomática da escrita de Francis Ponge. Nuno Rocha Morais não chega ao ponto de reescrever, para uso próprio e à maneira de uma arte poética explícita, o "My Creative Method" pongiano (a Ponge, ele vai buscar uma qualidade: a exactidão), mas a questão do método não lhe é de modo nenhum indiferente. Podemos, aliás, dizer que essa questão é responsável por uma outra tensão: aquela entre as emoções e a contemplação intelectual, entre a relação com o mundo e os outros, que é da ordem das afecções e que é determinada por uma atitude analítica.
Estes são os dois pólos que dinamizam a poesia deste autor e que fazem com que a sua poesia se erga num intervalo entre a ponderação reflexiva e as forças emotivas obscuras: "Vou por vielas sombrias,/ Só pensamento e passos,/ Com os olhos afundados em espiral./ Que operações do espírito/ Se entregam a estes passos?/ Vou pelas espirais sombrias/ Daqueles que não têm amor,/ Vielas sombrias como perguntas sem resposta,/ Entranhando-se numa cidade animal,/ De desejos mal iluminados" (pág. 53). E eis-nos chegados a outro ponto, também ele um campo de tensões: entre a harmonia austera de uma poesia que nomeia a presença com uma exactidão própria da fórmula e a atitude discretamente elegíaca que nasce de um lamento, de uma perda, de uma impossibilidade de proferir os nomes divinos capazes de dominar o mundo.

Tempo e negação
Mudo com o tempo que não muda,
Hei-de impor-lhe a minha metamorfose.
Nada será de criaturas e essências
Que eu não filtre,
Passados, planetas, marés, distâncias.
Será apenas o que eu passei
E nunca o que eu passar.
Existe sempre depois de mim
E é um pobre Narciso,
Vendo-se no rosto que abandonei.
Mudo com o tempo que só existe
Enquanto mudo, e um pouco depois
Para trás, em espaços aleatórios,
Interstícios arbitrários, construções.
Não existo nele e ele à minha frente
Senão quando o penso e projecto;
Sou a sua fronteira e caminho.
Ouço-o: raspa, roça, ronda,
Possivelmente com fome. Deixá-lo.
Depois de mim, irá livre.
para nunca mais ser tempo.
Nuno Morais

CONVITE À SENHORA BISHOP
Venha, por favor, senhora Bishop,
Voando por sobre o cemitério
Fronteiro à minha janela,
Por ruas sem sintaxe,
Por entre árvores que aqui se refugiam
Para poderem envelhecer.
Estarei à sua espera
Quando, à meia-noite,
O parapeito da minha varanda
For a amurada de um quarto
Que vira de bordo e se prepara
para dobrar o Cabo Horn.
Venha, por favor, senhora Bishop,
No salto mortal da elipse,
Revele o segredo da amputação impassível
Que anula a força centrípeta de um Eu,
O iceberg de fogo em constante naufrágio,
O mastro no topo do qual temos de adormecer.
Venha, por favor, senhora Bishop,
Deixe-se invocar, com um sorriso complacente,
Pela sua própria fórmula
Emprestada de outros
(E traga a senhora Moore).
Ensine como a geografia é a ciência
De reconhecer os lugares dentro de nós
E como o facto de serem concretos
Nos exprime e poupa ao etéreo –
As palmeiras que não prestam vassalagem
Ao vento em Key West
Ou o medo profundo que o barroco esconde
Em algumas cidades brasileiras
Ou a contida verdura da Nova Escócia.
Mostre como o mar aprendeu com os tubarões
A caçar ilhas,
Que desaparecem debatendo-se
Num furacão de espuma
E logo as águas cicatrizam;
Mostre como assim preda o seu verso
Num filão de minérios sensíveis.
Venha, por favor, senhora Bishop,
Prove que a única fantasia
É supor a existência de um real
Que não seja fabuloso.
Nuno Morais
[in Últimos Poemas, Quasi, 2009]

Contigo estaremos, Nuno, no Centro Cultural de Belém no dia 8 de Fevereiro e tu estarás connosco ... sempre.







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